A 5ª Turma do Superior Tribunal
de Justiça acolhe recurso da Defensoria Pública de SP e decide que desacato não
é crime.
A priori, nos termos do
artigo 331 do Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1943 - CP “Desacatar funcionário público no exercício
da função ou em razão dela” é tipo penal, comum, que pode ser cometido por
qualquer pessoa, como sujeito ativo. O sujeito passivo (principal) é o Estado.
E neste iter, quem pode ser sujeito
passivo secundário será o agente público, lado outro, o particular não integra
a esfera do suposto delito.
A elementar – desacatar requer ofender, humilhar, agredir,
desprestigiar o funcionário público no exercício da função ou em razão dela;
vez que os meios de execução exigem relevância de ânimo, p.ex.: gritos, palavras, gestos, vias de fato, agressão física com
lesão corporal ou qualquer ato que signifique irreverência, menosprezo para com
o sujeito passivo. (Tipo que exige dolo específico, consistente na “intenção ultrajante”, “propósito de depreciar ou vexar” Nelson
Hungria). Cabendo ressaltar que o legislador
criou um tipo penal excessivamente aberto, facilitando um número quase
ilimitado de condutas que podem ser imputada, podendo gerar, inclusive, uma
grande insegurança jurídica na aplicação da referida norma penal ao suposto
ofensor.
Magistério de Julio
Fabbrini Mirabete sobre a figura do desacato nos ensina:
“Sujeito ativo do crime
definido no art. 331 é qualquer pessoa que desacata o funcionário público no
exercício de sua função ou em razão dela. O funcionário público também pode ser
autor de desacato, desde que despido dessa qualidade, ou seja, fora da própria
função. Quanto à prática do crime no exercício da função, divide-se a doutrina
e a jurisprudência. Numa primeira posição, o funcionário público não pode
cometer o crime no exercício de suas funções, uma vez que o desacato está entre
os crimes praticados por particular contra a Administração em geral. Em uma
segunda orientação, há desacato quando a ofensa é praticada pelo servidor
apenas contra seu superior hierárquico. Na terceira, mais adequada, não há que
se fazer distinção, ocorrendo o ilícito penal independentemente da função que
exerçam os sujeitos ativo e passivo, já que a lesão é praticada contra a
Administração Pública.
In-cautela, segundo
Damásio de Jesus independe de o funcionário sentir-se ofendido, bastando que a
conduta do extraneu seja capaz de
causar dano á sua honra profissional (CP, p.
1003:2002). Porém, a crítica e a censura não constituem desacato, ainda que
seja de modo veemente, mas não se apresente de forma ofensiva ou
injuriosa.
Conforme Lélio Braga
Calhau (Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais) “São,
ainda, conhecidos os casos de abuso por parte de agentes públicos na interpretação
do crime de desacato. Existe uma grande desconfiança por parte da sociedade
civil quanto à aplicação correta do crime de desacato, notadamente, pela
interpretação elástica dada comumente por policiais”. (Revista Júris Síntese nº 49/2004).
HABEAS CORPUS – 1. Crime previsto
no art. 331, § 1º, do Código Penal (adulteração de sinal identificador de
veículo automotor). 2. Alegações: A) atipicidade da conduta; b) que o paciente
não seria o destinatário da norma penal; e c) violação do princípio da proporcionalidade
ou da razoabilidade. 3. Na espécie, afigura-se de todo evidente que a conduta
imputada ao paciente – substituição de placas particulares de veículo automotor
por placas reservadas obtidas junto ao Detran -, não se mostra apta a
satisfazer o tipo do art. 311 do Código Penal. 4. Não há qualquer dúvida de que
o órgão de controle – Detran – sabia e poderia saber sempre que se cuidava de
placas reservadas fornecidas à Polícia Federal. 5. Ordem concedida para que
seja trancada a ação penal contra o paciente, por não restarem configurados,
nem em longínqua apreciação, os elementos do tipo em tese. (STF – HC 86424 – SP
– 2ª T. – Rel. P/o Ac. Min. Gilmar Mendes – DJU 27.10.2006 – p. 63).
HABEAS CORPUS – TRANCAMENTO DA
AÇÃO PENAL POR CRIME DESACATO, EM RAZÃO DE ANTERIOR AÇÃO PENAL POR CRIME DE
ABUSO DE AUTORIDADE – ALEGAÇÃO DE BIS IN IDEM – INOCORRÊNCIA – DELITOS E
VÍTIMAS DISTINTAS – ORDEM DENEGADA – 1. Habeas corpus objetivando o trancamento
de ação penal em que se imputa ao paciente a infração ao art. 331 do Código
Penal, ao fundamento de que a conduta já foi objeto de ação penal no âmbito
estadual, por infração ao art. 3º, alíneas a e I, da Lei nº 4.898/1965. 2.
Embora os fatos descritos em ambas as ações penais tenham ocorrido
simultaneamente, numa mesma ocasião, não se confundem, sendo perfeitamente
dissociáveis, tanto que as vítimas e os delitos são distintos. Na esfera
estadual o paciente foi processado por abuso de autoridade contra um operador
de guincho; no âmbito federal, foi denunciado por desacato em face de policiais
rodoviários federais. 3. Alegação de bis in idem afastada. 4. Ordem denegada.
(TRF 3ª R. – HC 2005.03.00.045762-7 – (22122) – 1ª T. – Rel. Juiz Fed. Conv.
Marcio Mesquita – DJU 19.09.2006).
De qualquer modo,
entendendo que referida tipificação é incompatível com disposições do Pacto de
São José da Costa Rica (artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos),
da qual o Brasil é signatário a Defensoria Pública de SP obteve decisão
favorável perante o STJ que acolheu a tese em recurso especial interposto.
Em remate, para o
Defensor Público Luis Cesar Francisco Rossi na decisão proferida, o Superior
Tribunal de Justiça descriminaliza a conduta tipificada como crime de desacato,
nos termos do decisum proferido pelo Ministro relator do recurso em seu voto,
os funcionários públicos estão mais sujeitos ao escrutínio da sociedade. Em
razão disso, a criminalização do desacato atenta contra a liberdade de
expressão e o direito à informação.
Assenta
o acórdão que a tipificação penal está na contramão do humanismo, porque a
preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo e,
assim destaca: “A existência do crime, não raras vezes, serviu de instrumento
de abuso de poder pelas autoridades estatais, para suprimir direitos
fundamentais, em especial a liberdade de expressão”. Extrema sapiência. Com o
dizer de Giorgio Del Vecchio “A mais
cruel das injustiças, consiste precisamente naquelas que são feitas em nome da
lei”.
Conclui o ministro relator
no decisum que a previsão penal do desacato confronta desproporcionalmente a
liberdade de expressão prevista pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
Oportuno salientar que
a decisão vale apenas para o caso concreto, mas pode ser utilizado em demais
processos como precedente jurisprudencial. Inclusive, o Ministério Público
Federal manifestou-se favoravelmente à tese.
Inclusive, lembra a 5ª
Turma do STJ julgando por unanimidade que o STF já havia manifestado
entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos assinados
pelo Brasil têm natureza supralegal. Ademais, a descriminalização da conduta
não designa liberdade para agressões verbais ilimitadas, conforme pontua o
relator, já que o agente pode ser responsabilizado por outras formas pela
agressão.
Em remate, a matéria submetida
para o julgamento relata que um homem havia sido condenado a cinco anos e cinco
meses de reclusão por roubar uma garrafa de bebida avaliada em R$ 9,00, teria
ainda, desacatado os policiais que o prenderam e ter resistido à prisão.
Cabe salientar,
outrossim, que a tese acolhida pelo STJ tem sido defendida desde o ano de 2012 pela
Defensoria Pública de SP, quando acionou a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) – órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA) – para
contestar uma condenação criminal por desacato, sustentando que a condenação
por desacato (artigo 331 do Código Penal) é incompatível com o a Convenção
Americana, que trata da liberdade de pensamento e de manifestação.
Conforme
os Defensores Públicos, naquela representação supramencionada “se alguma norma
de direito interno colide com as previsões da Convenção Americana sobre os
Direitos Humanos pra restringir a eficácia dos direitos e liberdade, a
interpretação a ser dada é no sentido de prevalência da norma do tratado e não
da legislação interna. Dessa maneira, a vítima jamais poderia ter sido
processada e condenada pelo crime de desacato”.
FONTE MATERIAL E
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DELMANTO, Celso,
Roberto, Fábio, Roberto Júnior. Código Penal Comentado 7ª ed. Editora Renovar,
2007.
DPE/SP Notícias
(edição:
16/12/2016)
FRANCO, Alberto Silva e RUI Stoco. Código Penal e sua Interpretação –
Doutrina e Jurisprudência 8ª Ed., editora Revista dos Tribunais, 2007.
HORCAIO, Ivan. Dicionário Jurídico Referenciado 2ª edição:
Primeira Impressão, 2007.
JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado13º edição,
Editora Saraiva, 2002.
LOPORÉ, Paulo; RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri. Manual do Defensor Público 2ª ed. Editora JusPODIVM, 2014.
Vade
Mecum RIDEEL
Acadêmico de Direito 22ª Ed., Organização: Anne Joyce Angher. 2016.
https://dp-sp.jusbrasil.com.br/noticias/415756458/stj-acolhe-recurso-da-defensoria-publica-de-sp-e-decide-que-desacato-nao-e-crime
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