"Pode-se definir democracia das maneiras mais diversas, mas não
existe definição que possa deixar de incluir em seus conotativos a visibilidade
ou transparência do poder". (Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia,
p. 20/21)
É bastante comum o questionamento dos veículos de comunicação a respeito
da possibilidade legal de se divulgarem fatos, cujos processos que os discutem
tramitam em segredo de justiça.
Embora sigilo e segredo sejam comumente tratados como sinônimos, os
vocábulos não se confundem. O primeiro é derivado do latim sigillum, que
representa a ideia de algo sobre o qual recai um sinal, uma marca, que não pode
ser revelada. Já o segredo, do latim secretum, passa a ideia de que determinado
conhecimento não pode ser revelado. Assim, podemos interpretar que o secretum
corresponde ao conteúdo da “carta” e o sigillum à maneira como alguém
emitente garante a sua inviolabilidade.
Entretanto, como dito, sigillum
e secretum são tratados como
sinônimos em nosso ordenamento.
Ainda que sumariamente para este espaço, a história dos atos em sigilo
remete ao Egito Antigo, em que era sigiloso o momento das decisões dos
julgadores, enquanto que a instrução e a proclamação das decisões eram
públicas. Mas foi com a ascensão do Império Romano que o sigilo ganhou
contornos do que mais se aproxima ao que temos hoje em nosso ordenamento. Com a
concentração de poder nas mãos do Imperador, adotaram-se processos por escrito
e as salas de audiências começaram a serem fechadas por uma cortina (velum).[1]
O controle que o sistema criado dava ao Imperador e os atos em segredo
de justiça permitiram abusos e corrupção, que cresciam na medida em que os atos
continuavam encobertos pelo velum. Já no declínio do Império Romano, começa a
prevalecer a publicidade dos atos do processo[2], permitindo certo controle dos
atos oficiais pela sociedade.
A Constituição
Federal de 1988 estabelece em seu artigo 5º, LX, que somente a lei poderá
restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou
o interesse social o exigirem. Percebe-se pelo texto constitucional
que o legislador constituinte, inspirado pelos valores republicanos, cuja
premissa é expor as coisas do Estado ao público, sequer utilizou o vocábulo
sigilo ou segredo, preferindo utilizar restrição como exceção ao valor
substancial da publicidade.
A publicidade, do latim publicus,
de publicare, passa a ideia de expor ao público, e é considerada uma garantia
fundamental de controle democrático, que, como leciona o professor Rogério
Lauria Tucci, representa a garantia de que o procedimento observa a legalidade
e permite à sociedade formar opinião.[3]
A leitura do texto constitucional, associada à ideia iluminista de que a
publicidade permite à sociedade um controle e acompanhamento dos atos do
processo, num claro e evidente valor republicano, já nos permite responder
afirmativamente que não há “assunto” em sigilo, mas tão somente atos
processuais em sigilo, exatamente para preservar intimidade ou interesse social
que mereçam essa exceção, tratada pelo constituinte como restrição ao valor
maior da publicidade.
A restrição, ao contrário de mitigar ou diminuir o valor da publicidade,
na verdade a enaltece, indicando a preferência do Estado brasileiro pelos atos
públicos.
Assim, se a imprensa teve acesso a informações que gozam de interesse
público e que possuem um mínimo de veracidade, ainda que tais fatos estejam
sendo discutidos em processo sob o instituto do sigilo, não nos parece haver
qualquer impedimento de se publicar o “assunto” lá tratado.
Não se está aqui a defender a divulgação de atos do processo em sigilo,
tais como atas, documentos, petições, despachos, decisões (para isso, há de se
ponderar os valores fundamentais em aparente conflito) mas sim que o assunto
pode ser objeto de material jornalístico, necessitando para isso se averiguar a
existência de interesse público e verossimilhança dos fatos.
Não há, portanto, normativo constitucional ou infraconstitucional que
impeça a divulgação de “assunto” de interesse público, ainda que
decorrente de processo sigiloso.
Também há de se analisar a licitude do meio empregado pelos
profissionais da imprensa, na medida em que a obtenção da informação
jornalística por meios ilícitos é condenável. Nesse sentido, temos que a
obtenção de informações mediante interceptação telefônica clandestina, invasão
de domicílio, tortura, ameaça retiram a licitude da publicação.
Portanto, havendo interesse jornalístico, verossimilhança dos fatos e
sendo legal o meio de obtenção das informações, qualquer tutela jurisdicional
que proíba a divulgação de notícia mediante o argumento de que o assunto está
sendo tratado em processo que tramita em segredo constitui, a nosso ver, uma
ilegalidade, violando o normativo constitucional que prestigia a liberdade de
expressão e à publicidade conferida à coisa pública.
Recentemente, tivemos alguns episódios cuja discussão pautava-se
exatamente nesse equilíbrio de forças e princípios. Para citarmos apenas dois,
lembramos do impedimento que a revista eletrônica Consultor Jurídico sofreu por
veicular notícia jornalística a respeito de uma decisão que impedia a exibição
de peça teatral inspirada no assassinato da menina Isabella Nardoni.
Os autos em que a mãe da criança litigava com os autores da obra teatral
tramitavam em segredo, tendo o juízo determinado, em razão da veiculação da
notícia jornalística a respeito da existência do processo, que fosse retirado o
material jornalístico sob o argumento de violação do sigilo decretado naqueles
autos.
Outro caso recente teve como protagonista a revista IstoÉ, que
havia publicado, em meados do ano de 2014, informações da delação premiada do
ex-diretor da Petrobras, cujo depoimento apontava para o então governador, hoje
ministro da Educação, Cid Gomes.
O atual ministro da Educação resolveu ajuizar ação cautelar com pedido
de recolhimento de toda a edição, sob o fundamento de que os autos em que houve
a delação premiada estavam em sigilo, de modo que a publicação teria cometido
uma ilegalidade ao falar sobre o assunto e divulgar o seu nome.
Nas duas situações, o STF (RCL 18566 / RCL 18638) garantiu a informação
mesmo que reveladora de assunto cujo processo em que ele é discutido tramite em
sigilo, podendo ser destacado a ponderação o ministro Roberto Barroso:
“Embora as informações em questão aparentemente estejam protegidas
por segredo de justiça, não há elementos mínimos para concluir que a violação
tenha partido dos profissionais da imprensa que receberam informações. Embora
possa ter havido ato ilícito por parte de quem tenha eventualmente comprometido
o sigilo de dados reservados, a solução constitucionalmente adequada não
envolve proibir a divulgação da notícia (...).”
RCL 18.638 MC/CE, Rel. MIN. ROBERTO BARROSO
Caso entendêssemos que o sigilo nos autos do processo impede a
publicação do assunto, como defendido nas ações referidas acima, bem como
acolhido pelos juízos singulares, a tutela jurisdicional requisitada privaria a
sociedade de tomar conhecimento de assunto que consulta o seu interesse, em
evidente violação ao artigo 5º, XIV, da CF, bem como cercearia a imprensa de
seu direito constitucional, de valor republicano e democrático, de publicar
assunto de interesse público.
Como disse o ministro Teori Zavascki para levantar o sigilo do processo
de investigação dos envolvidos na operação lava jato, é importante, até mesmo
em atenção aos valores republicanos, que a sociedade brasileira tome
conhecimento dos fatos relatados.
Ora, como exigir da sociedade uma reflexão crítica se defendermos que as
cortinas (velum) permaneçam fechadas inclusive para os assuntos tratados em
processo sigiloso?
Como ensina Norberto Bobbio, em sua obra O Futuro da Democracia: "Que
todas as decisões e mais em geral os atos dos governantes devam ser conhecidos
pelo povo soberano sempre foi considerado um dos eixos do regime democrático,
definido como o governo direto do povo ou controlado pelo povo (e como poderia
ser controlado se estivesse escondido?)"
Notas de rodapé:
[1] Conf. Almeida Jr., João Mendes de. O processo criminal brasileiro.
4ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Forense, 1959
[2] Conf. Cruz e Tucci, José Rogério; Azevedo, Luiz Carlos. Lições de
história do processo civil romano. São Paulo: RT. 1996
[3] Conf. Cruz e Tucci, José Rogério; Azevedo, Luiz Carlos. Lições de
história do processo civil romano. São Paulo: RT. 1996
Publicado aos 13/03/2015, destaque no
Espaço Vital, notícias jurídicas.
FONTE:
http://www.espacovital.com.br/noticia
Produzido por Alexandre Fidalgo,
advogado (Originalmente
publicado no saite Consultor Jurídico).
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